A retomada da essência da assessoria jurídica na NLLC
A retomada da essência da assessoria jurídica na NLLC

A RETOMADA DA ESSÊNCIA DA ASSESSORIA JURÍDICA NA NOVA LEI DE LICITAÇÕES: AMPLIAÇÃO DO SEU PAPEL PARA DEFESA DE AGENTES PÚBLICOS COMO INCENTIVO À ATUAÇÃO PROATIVA E EFICIENTE DOS TOMADORES DE DECISÃO.

 

Natally Vasconcelos de Mendonça

 

RESUMO: Este artigo objetiva analisar os efeitos decorrentes da retomada, pela Lei nº 14.133/2021, da essência do órgão de assessoramento jurídico ao exercício de suas funções típicas. O deslocamento da função de controle acabou por escantear o auxílio aos agentes públicos tomadores de decisão, fato este que, associado à disfuncionalidade das análises subjetivas e casuísticas dos órgãos de controle, conduziu os atores do processo a agir de modo pouco eficiente, em razão do medo da responsabilização. Analisaremos, assim, o maior incentivo trazido pela NLLC para que os agentes públicos tomem decisões arrojadas em busca de uma real eficiência.

 

PALAVRAS-CHAVES: Lei nº 14.133/2021. Retomada da essência da Assessoria Jurídica. Defesa dos agentes públicos. Incentivo. Atuação eficiente.

 

1 INTRODUÇÃO

 

É chegada uma nova era das contratações públicas. Após um longo período de transformações, alterações e convivência de diversas normas que tratam sobre licitações e contratos administrativos (Lei nº 8.666/93, Lei nº 10.520/2002, Lei nº 12.462/2011, Lei nº 13.303/2016 etc.), o legislador federal, absorvendo características de diversos diplomas legais e infralegais, além da doutrina e da jurisprudência, editou, em 1º de abril de 2021, a Nova lei de Licitações e Contratos - Lei nº 14.133/2021.

 

Inúmeras são as mudanças, ou melhor dizendo, as positivações num corpo único de regras e entendimentos já há muito sedimentados no dia a dia da Administração Pública.

 

O objetivo deste artigo, longe de esgotar o tema, é destacar o papel conferido à assessoria jurídica, a sua importância no auxílio ao agente público na tomada de decisão, a nefasta consequência do medo disseminado entre os agentes públicos decorrente da atuação dos órgãos de controle e a reconstrução da sua natureza como órgão de assessoramento. Isto porque, por muito tempo, ao órgão de assessoramento jurídico delegou-se a função atípica de controle, relegando-se a segundo plano o exercício de suas funções constitucionalmente típicas de representação, assessoria e consultoria.

 

Ao retomar a essência da assessoria jurídica, a NLLC não apenas muda o paradigma de atuação dos advogados públicos, enaltecendo o exercício de suas funções essencialmente típicas, mas também, e principalmente, o modo de agir e de decidir dos agentes públicos auxiliados diretamente por eles.

 

A comumente denominada “Administração Pùblica do Medo” não é uma ficção. Muitos agentes públicos deixam de atuar no âmbito das licitações e contratos por medo da responsabilização a todo custo, o que traz o problema da seleção adversa existente não apenas quando tratamos de escolha de fornecedor, mas também de manutenção de bons servidores nos quadros para o efetivo desempenho das funções essenciais e necessárias para a fiel execução da lei de licitações, seja ela qual for.

 

É nesse contexto que surge o art. 10 da Lei nº 14.133/2021 e é sobre este novo papel da assessoria jurídica, ou a retomada dele, que este trabalho será desenvolvido.

 

2 A ASSESSORIA JURÍDICA E O SEU PAPEL NOS PROCESSOS DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA

 

2.1 MATRIZ CONSTITUCIONAL

 

Nos termos do art. 2º da Constituição Federal de 1988 , são Poderes da União, considerados independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. É o que todos conhecemos como princípio da separação dos Poderes decorrente do modelo tripartite idealizado por Montesquieu em sua obra Do espírito das leis, segundo o qual tudo está perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse os três poderes: “o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas, e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos" .

 

A separação tripartida de poderes trouxe à tona um sistema de necessária governança onde cada um exerce a sua função de forma autônoma e auditável, a fim de que desvios não sejam acobertados, o que provavelmente ocorreria caso as funções fossem desempenhadas apenas e unicamente por um deles (limitação do poder absoluto).

 

Contudo, é cediço que não se pode ler nem interpretar a Constituição Federal de maneira isolada, senão de forma sistemática e nessa linha hermenêutica, se, para além do disposto no art. 2º, considerarmos a menção expressa à existência de funções outras, além das funções de legislar, executar leis e julgar, as quais foram alçadas ao status de essenciais à justiça (Ministério Público, Advocacia Pública, Advocacia privada e Defensoria Pública), será possível inferir, como bem destacado pelos professores Anderson Pedra e Ronny Charles Lopes de Torres , que a tripartição de matriz montesquiana não se revela suficiente para o Estado Constitucional de Direito moderno.

 

Para efeitos deste trabalho, trataremos apenas e tão somente da Advocacia Pública exercida, no âmbito federal pela Advocacia Geral da União - AGU, e, no âmbito estadual, pela Procuradoria Geral do Estado e pela Procuradoria Geral do Distrito Federal.

 

Registre-se, todavia, que em que pese a advocacia pública municipal não seja mencionada no texto constitucional, é inconteste de dúvidas a sua importância, cabendo a ela, onde for formalmente instituída, a partir do poder de auto-organização do município, o exercício das funções a ela inerentes, quais sejam: representação judicial, consultoria e assessoramento.

 

Revela-se salutar compreender que a inserção da Advocacia Pública em capítulo autônomo em relação aos Poderes decorrentes da repartição montesquiana (Legislativo, Executivo e Judiciário) tem razão de ser fundamentada em premissas que possuem como intuito precípuo a manutenção do equilíbrio e da harmonia entre eles.

 

A Advocacia Pública, assim, a partir de sua atuação técnica, e nos termos do art. 131 da Carta Magna , exerce parcela de poder estatal cujo objetivo maior é o da defesa da juridicidade , sendo possível extrair do texto constitucional as funções típicas delegadas à Advocacia Pública, neste caso à Advocacia Geral da União: representação judicial e extrajudicial, consultoria e assessoramento jurídico.

 

Destaque-se, por oportuno, que aos Procuradores dos Estados e do Distrito Federal caberão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas, consoante o disposto no art. 132 da Carta Magna de 1988. Aos Municípios, pelo princípio da simetria, entendemos ser a dicção do art. 132 a eles extensiva.

 

2.2 A ASSESSORIA JURÍDICA NA LEI Nº 8.666/93: DESLOCAMENTO DA FUNÇÃO DE CONTROLE E O MEDO COMO ALIADO DO ADVOGADO PÚBLICO

 

A Lei Geral de Licitações (Lei nº 8.666/93), muito embora de natureza maximalista,, tratou da função a ser desempenhada pela assessoria jurídica em um único dispositivo: o parágrafo único do art. 38, a ver:

 

Art. 38. [...] Parágrafo único. As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração. (Redação dada pela Lei nº 8.883, de 1994). (grifo nosso)

 

Infere-se, sem dificuldade, que a atuação da assessoria jurídica restou delimitada única e exclusivamente ao exame e aprovação prévia de minutas de editais, contratos, acordos, convênios ou ajustes. Aliás, a redação da norma supra, bem como a função dada à assessoria jurídica, é muito similar a do art. 31 do Decreto-lei nº 2.300/1986 que o antecedeu.

 

A única diferença entre os dois diplomas reside na necessidade, para a Lei nº 8.666/93, de não apenas examinar, mas também de aprovar a minuta, o que nos leva a constatar a verdadeira natureza de controle conferida, de forma atípica, à assessoria jurídica, e é atípica justamente em razão de não ter a Advocacia Pública a natureza nem de controlador externo nem de controlador interno.

 

O seu papel é, na Lei nº 8.666/93, portanto, de análise de conformidade dos atos procedimentais à subsunção da lei, ou seja, uma atividade de controle eminentemente burocrático.

 

Registre-se que essa repetição quase que integral se deu em razão do momento histórico vivenciado pelo país naquele momento, onde as atenções estavam voltadas à urgente e encegueirada necessidade de combate à corrupção e de instalação, na Administração Pública, por óbvio necessária, de um ambiente de integridade, o que levou o legislador a ignorar o futuro e a enaltecer as regras do passado para ainda mais recrudescê-las, em que pese a própria história tenha mostrado que as normas até então não evitaram a prática da corrupção.

 

O fato é que esse deslocamento de competência para a assessoria jurídica trouxe um problema não apenas de identidade para a Advocacia Pública, mas também um problema operacional de exercício efetivo das suas funções constitucionais típicas, quais sejam: representação judicial e extrajudicial, consultoria e assessoramento.

 

É certo que no momento da edição da Lei nº 8.666/93 o sistema de controles externo (TCU) e interno (CGU) ainda não se mostravam eficientes para combater desvios, em verdade eles ainda eram incipientes ou inexistentes, entendendo o legislador federal que alguém deveria realizar esse papel e a Advocacia Pública do âmbito federal (AGU) acabou por ganhar uma competência diversa daquela que seria sua por essência e, portanto, atípica, qual seja: o controle burocrático das contratações públicas.

 

A análise e aprovação prévia das minutas de editais, contratos, acordos, convênios ou ajustes tornou a Advocacia Pública uma espécie de órgão de controle, sabotando, por consequência, o desenvolvimento da vocação constitucional deste órgão essencial à Justiça, na medida em que ao invés de analisar o processo para auxiliar o gestor na tomada consciente e eficiente de decisão, passou-se a apenas e tão somente a checar se os atos estavam conforme prescrito em lei.

 

Nesse contexto, tendo a conformidade do procedimento licitatório restado a cargo da Advocacia Pública, o que se verifica até hoje, muito embora os órgãos de controle interno e externo tenham crescido e ganhado força ao longo dos anos, a função típica da assessoria jurídica não só ficou relegada a segundo plano, em virtude do grande volume de processos que se movimenta nessa esfera, como se tornou, em grande medida, uma atividade reativa e rígida, notadamente em virtude de os pareceres exarados terem passado a ser avaliados também pelos órgãos de controle, levando alguns agentes públicos à responsabilização. O instinto de autopreservação, então, passou a ser um dos itens do checklist do parecerista.

 

A função da assessoria jurídica, na análise das minutas, deveria estar pautada na identificação de eventuais falhas, a indicação do caminho para a correção e a entrega de possíveis soluções mais eficazes à eficiência do processo de contratação, o que não se confunde aqui, frise-se, com imiscuir-se em questões eminentemente técnicas do objeto e do mérito administrativo da gestão. No entanto, questiona-se: como agir de forma proativa e segura? Há efetiva segurança jurídica para a inovação, o aconselhamento e a futura compreensão do órgão de controle de que, para dada realidade, aquele comportamento era, de fato, o melhor para o caso em análise?

 

Na visão de muitos profissionais da Advocacia Pública não há essa segurança e contar com a sorte não é o mais prudente a se fazer, fato este que induziu diversos órgãos jurídicos a tomar como padrão a conferência de uma espécie de checklist para sua segurança em detrimento, porque não dizer, da efetiva e concreta análise da demanda sob a perspectiva da busca pela eficiência da contratação.

 

Segundo Rodrigo Valgas dos Santos , ao tratar do medo de decidir do gestor público, “dorme tranquilo quem indefere”. É de se entender que essa máxima é levantada não apenas pelo gestor público que está à frente da pasta, a quem compete o poder de decidir efetivamente, mas também pelos advogados públicos, em que pese haja entendimento do TCU de que para sua responsabilização há de se inferir a existência de erro grosseiro , pois não há como negar que a subjetividade na análise das demandas é um ponto extremamente sensível e que causa recuo dos profissionais corretos e bem intencionados.

 

Ora, não bastasse o grande volume de demandas, o medo e o instinto de autopreservação passaram, de forma inegável, a fazer parte da rotina do advogado público, levando o exercício de suas funções típicas de representação extrajudicial e consultoria ao escanteio e com isso perde não apenas o gestor que poderia receber um maior auxílio no aprimoramento de suas funções administrativas, a partir de pareceres disruptivos e inovadores , como também, e principalmente, a sociedade, destinatária final da contratação pública, que perde qualidade e eficiência na prestação do serviços entregues a ela.

 

O deslocamento da função de controle é, pois, clarividente, o que não nos parece nem inteligente, muito menos econômico no final das contas.

 

Anos se passaram e a pergunta que fica é: o legislador entendeu a necessidade da retomada da essência da assessoria jurídica com a NLLC ou ainda há resquícios do modelo arcaico e excessivamente burocrata da Lei nº 8.666/93?

 

2.2.1 O PARECER COMO RESULTADO DA ATIVIDADE CONSULTIVA, FUNÇÃO TÍPICA DA ASSESSORIA JURÍDICA, E A DESNATURAÇÃO DO OBJETIVO REAL DE AUXÍLIO AO GESTOR PELA SOBRECARGA DO CONTROLE PUNITIVO

 

Antes de tratarmos do enfoque dado ao papel da Advocacia Pública pela nova Lei de Licitações e Contratos, é salutar identificar os tipos de pareceres que podem ser elaborados e apontar qual deles é utilizado no âmbito do processo de contratação pública, além do seu intuito e da sua real entrega à sociedade.

 

A doutrina administrativista confere ao parecer a natureza jurídica de espécie de ato administrativo consistente, mais especificamente, no ato pelo qual os órgãos consultivos da Administração emitem opinião sobre assuntos técnicos ou jurídicos de sua competência.

 

Juliano Heinen ensina que o parecer, espécie de ato administrativo compreende uma opinião exarada por uma determinada autoridade sobre determinado assunto de seu conhecimento (competência), auxiliando o gestor público na tomada de decisão. É, pois, o ato pelo qual um técnico manifesta uma opinião que auxilia na tomada de uma decisão administrativa. E acrescenta que parecer, que significa, enfim, “o que parece”, pode ser i) facultativo, ii) obrigatório ou necessário, quando “o Administrador Público não poderá expedir o ato administrativo sem a possibilidade de se valer de uma opinião técnica”, sob pena de nulidade do procedimento e, por consequência, a invalidação do ato, iii) vinculante parecer” ou iv) normativo. ”

 

Da leitura da doutrina é possível categorizar o parecer jurídico emitido no âmbito da contratação pública como aquele de natureza obrigatória, posto restar estampado no texto legal que “as minutas de editais de licitação, bem como de as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas pela assessoria jurídica da Administração" . (grifo nosso)

 

Além de obrigatório, posto não permitir a lei margem de discricionariedade do gestor em enviar o processo de contratação para análise prévia, o parecer jurídico fornecerá importantes dados ao gestor público para a tomada de decisão, orientando a melhor escolha a ser feita.

 

Vê-se, portanto, assim como já esclarecido no tópico anterior, que a essência da atuação da assessoria jurídica nos processos de contratação pública é de, desempenhando uma função atípica de controle e verificação de conformidade dos atos, auxiliar o gestor, agora já exercendo a sua função típica, a fazer a melhor escolha sem, contudo, imiscuir-se nas questões eminentemente técnicas e de competência tanto das áreas efetivamente técnicas da pasta quanto do gestor enquanto autoridade máxima do órgão contratante.

 

Doutra banda, é inconteste que o rigor e porque não dizer excesso de controle burocrático e punitivo dos órgãos fiscalizadores tem desnaturado esse papel auxiliar, na medida em que os advogados públicos, no instinto de autopreservação, tem preferido respostas reativas e autoprotetoras a orientações disruptivas que verdadeiramente auxiliem os gestores públicos na construção de melhores caminhos para o atendimento efetivo do interesse público. É o que Rodrigo Valgas dos Santos denomina de “medo e técnicas de fuga da responsabilização” decorrente do exercício do hipercontrole externo, cuja racionalidade não é previsível, maximizando o medo do agente em ser responsabilizado.

 

Para o referido autor :

 

Já o fenômeno do risco de responsabilização dos agentes público decorrente do controle externo disfuncional e as respectivas estratégias disuasorias aqui tratadas, por vezes, são enfrentados de modo intuitivo e instintivo, pouco ou nada transparente, cuja finalidade precípua não é a gestão de riscos, mas evitar a possibilidade de responsabilização individual pela tomada de decisão, nem que para isso se procure nada decidir, ou transferir a terceiros os ônus da decisão, sem preocupação de tratar riscos sistematicamente.

 

Como se pode perceber, muitas das estratégias de fuga da responsabilização são disfuncionais [...] Isso decorre diretamente do exercício do hipercontrole externo, cuja racionalidade não é previsível, maximizando o medo do agente em ser responsabilizado.

 

Mutatis mutandis, haja vista o autor se referir especificamente ao tomador de decisões, neste caso o gestor da pasta, o advogado público acaba, por vezes, agindo do mesmo modo ao exarar pareceres genéricos que condicionam a atuação do gestor a diversos atos sem, contudo, indicar verdadeiramente um caminho a seguir, fazendo com que o tomador de decisão aja sem certeza, sem um parâmetro seguro e firme.

 

Dito de outra forma, em que pese a assessoria jurídica não decida, o medo da responsabilização pela opinião posta no parecer, opinião esta que servirá de base para a decisão administrativa do gestor, impede que o advogado público exerça seu múnus de forma inovadora, deixando o gestor sem respostas objetivas e claras sobre o que realmente pode ser feito no caso em discussão. Neste sentido, se não há verdadeiro auxílio, há apenas e tão somente a entrega de um documento para cumprimento do que determina a lei.

 

Nas palavras de Rodrigo Valgas dos Santos , um cenário de hiper-responsabilização produz efeitos deletérios, na medida em que as opiniões se mostram muito mais reativas e cautelosas que disruptivas e inovadoras. A autoconfrontação se sobrepõe à reflexão.

 

É importante destacar, que esse medo de responsabilização tem razão de ser decorrente da interpretação subjetiva que os órgãos de controle conferem ao que prescreve o art. 28 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - LINDB, que dispõe que “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.” (grifo nosso)

 

Exemplo claro deste raciocínio reside no entendimento já assentado pelo Tribunal de Contas da União - TCU, no sentido de que o parecerista jurídico pode ser responsabilizado por parecer com erro grosseiro, emitido em cumprimento ao art. 38, parágrafo único, da Lei 8.666/1993, que exige o prévio exame e aprovação das minutas de contrato pelas assessorias jurídicas, a ver:

 

[...]164. Como destacado na análise dos argumentos pela unidade técnica [...], a jurisprudência do TCU reconhece que os pareceristas podem ser responsabilizados por parecer vinculativo que contenha erro grosseiro. A possibilidade de responsabilização também é aceita pelo Supremo Tribunal Federal (MS 24.631/DF, de 9/8/2007 e MS 24.584/DF, de 9/8/2007) quando a consulta não é facultativa. 165. No caso, os pareceres foram emitidos em cumprimento à Lei 8.666/1993, que exige o prévio exame e aprovação das minutas de contrato pelas assessorias jurídicas (art. 38, parágrafo único) [...] (TC Processo 022.310/2009-3 [...]. (Tribunal de Contas da União. Acórdão nº Acórdão 1151/2015. Plenário. Tomada de Contas Especial. Relatora Ministra Ana Arraes. Data da sessão:13/05/2015, grifo nosso).

 

A pergunta que surge, então, é: o que, efetiva e objetivamente, é considerado erro grosseiro? O Decreto nº 9.830/2019, ao regulamentar a LINDB, dispôs, em seu art. 12, §1º, ipsis litteris:

 

Art. 12. [...] § 1º Considera-se erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia. (grifo nosso)

 

Percebam que o conceito, ainda que tente direcionar uma interpretação, não é de todo determinado, objetivo, revelando-se necessária a atuação do órgão de controle externo ou judicial para a sua interpretação, o que nos leva a deduzir a sua elevada carga de subjetividade e a consequente reserva por parte de quem atua na área de licitações e contratos e está sujeito aos órgãos de controle.

 

Sobre este tema, ainda o Tribunal de Contas da União, ao decidir a respeito de um caso concreto, assim se manifestou:

 

[...] 24. No que se refere ao art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) , cabe ressaltar que o dispositivo prevê como um dos pressupostos para a responsabilização do agente público a prática de ato com erro grosseiro. Este tipo de falha é definido pela jurisprudência deste Tribunal como aquele cometido com culpa grave [...] (Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 26/2022. Segunda Câmara. Recurso de Reconsideração. Relator Ministro Raimundo Carreiro. Data da sessão: 25/01/2022, grifo nosso).

 

Entendeu a Corte de Contas que o erro grosseiro é aquele cometido com culpa grave. O conceito de erro grosseiro, conforme se infere, continua vago, pois vinculado a outro termo indeterminado: culpa grave.

 

Ora, em que pese o Decreto nº 9.830/2019 considere erro grosseiro aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia, não há segurança por parte de quem orienta o gestor acerca dos limites do que pode ser considerado efetivamente um erro grosseiro, o que reforça a postura acuada e reativa de quem não decide, mas opina e tem grande influência sobre a decisão que será tomada mais adiante.

 

Rodrigo Valgas dos Santos preconiza que o medo reflete a incapacidade de gerenciar riscos, incapacidade esta que decorre ou de limitações pessoais ou de questões externas ou, ainda, da alta probabilidade de ameaça que conduz naturalmente ao sentimento de medo. Para ele, mesmo que os agentes públicos apresentem substanciosas razões de decidir, estes mesmos agentes sempre estarão sujeitos à elevada responsabilização, o que os leva à cultura do medo ou a outras disfuncionalidades que os livre de responsabilização.

 

Carlos Ari Sundfeld , ao comentar o art. 28 da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, entende que quando a LINDB exigiu o dolo ou o erro grosseiro, não vinculou a punição dos agentes públicos, por óbvio, à subjetividade, mas a protocolos que a jurisprudência e a doutrina estabeleceram em conjunto, não havendo espaço, portanto, repita-se, para subjetivismo. E de forma enfática crítica os órgãos de controle que, prometendo lutar contra os desvios, defendem mais subjetividade, “só que para si mesmos”, ao contrário do que preconiza a LINDB.

 

Por óbvio não cabem generalizações, na medida em que é cediço que parcela dos controladores e intérpretes do direito posto ou principiológico atuam de forma acurada e associada à realidade e dificuldades demonstradas no caso concreto e, além disso, se preocupam com o consequencialismo que a decisão trará. Contudo, a crítica, para uma parcela, se faz necessária, a fim de que se possa refletir a condução dos processos e se possa promover a mudança de paradigma hoje calcado na punição encegueirada e a todo custo.

 

É nesse contexto, no caso dos pareceristas, que se pode afirmar que não estar-se a tratar da cultura da não decisão, mas da evasão da responsabilização por outras disfuncionalidades, decorrentes do medo da responsabilização, como a generalidade das orientações que não são capazes de concretamente orientar e auxiliar o gestor na tomada de boas, disruptivas, inovadoras e efetivas decisões que atendam ao interesse público.

 

2.3 A ASSESSORIA JURÍDICA NA LEI Nº 14.133/2021: A RETOMADA DA SUA ESSÊNCIA REPRESENTATIVA, CONSULTIVA E DE ASSESSORIA AOS GESTORES PÚBLICOS

 

O ponto central deste trabalho começará a ser desenhado neste tópico, pois é com a edição da Lei nº 14.133/2021, denominada de Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos - NLLC, que o papel da assessoria jurídica passa por uma reformulação que nos permite afirmar que finalmente houve a retomada da sua essência, isto é, à assessoria jurídica caberá desempenhar, de forma primordial, as suas funções típicas de representação judicial e extrajudicial, de assessoria e de consultoria jurídica, muito embora a função atípica de controle ainda permaneça a ela atribuída.

 

Pois bem. De início é importante destacar que, de forma diametralmente oposta ao antigo regime geral licitatório, a Lei nº 14.133/2021 tratou do tema relativo ao corpo jurídico da Administração Pública em diversos momentos e não apenas uma única vez, como infere-se do art. 38, parágrafo único da Lei nº 8.666/93 que atribui a ela apenas e tão somente a análise prévia de minutas e a correspondente aprovação de cada uma delas.

 

Apenas para entendermos a dimensão do novo enfoque dado à assessoria jurídica, listemos os artigos da NLLC a que se faz menção expressa referido órgão: art. 7º, § 2º; art. 8º, § 3º; art. 10; art. 19, IV; art. 53, caput, §§1º, 4º e 5º; art. 117, § 3º; art. 168, parágrafo único; e art. 169, parágrafo único.

 

Fato é que, repita-se, em que pese a nova lei tenha mantido a atuação atípica de controle, a assessoria jurídica, neste novo regime, passará a atuar de forma mais proeminente nas suas funções típicas de representação judicial e extrajudicial, de consultoria e de assessoramento aos agentes públicos que atuam nos processos de contratação pública, o que trará, sem dúvidas, a necessidade de reformulação dos órgãos de Advocacia Pública, na medida em que o trabalho diário será diretamente impactado com todas as novidades.

 

Como visto, a preocupação do legislador federal foi a de esmiuçar não apenas o papel da assessoria jurídica, mas o de revelar quais os requisitos devem ser atendidos para o exercício da função. Neste trabalho, no entanto, nos ateremos ao exercício em si das funções relativas ao munus do advogado público.

 

2.3.1 DO CONTROLE DE LEGALIDADE DA CONTRATAÇÃO. MANUTENÇÃO DA FUNÇÃO ATÍPICA E SUA AMPLIAÇÃO PARA A VERIFICAÇÃO ALÉM- MINUTAS

 

Dispõe o art. 53, caput e § 4º da Lei nº 14.133/2021 que ao final da fase preparatória, o processo licitatório seguirá, como regra geral, para o órgão de assessoramento jurídico que fará o controle prévio de legalidade mediante a análise jurídica da contratação, o que também ocorrerá nos casos de contratações diretas, acordos, termos de cooperação, convênios, ajustes, adesões a atas de registro de preços, outros instrumentos congêneres e de seus termos aditivos.

 

Depreende-se, portanto, e de forma muito clara, a permanência do viés controlador e burocrático que a legislação federal conferiu ao trabalho da assessoria jurídica, em que pese há muito já tenha se desenvolvido as funções tipicamente delineadas pelo Constituinte, no âmbito federal, tanto para o TCU, no exercício do controle externo, quanto para CGU no que diz respeito ao controle interno da Administração Pùblica Federal.

 

Assim, nos termos da NLLC, ao órgão de assessoramento jurídico competirá, ao final da fase preparatória do certame, e de forma prévia, analisar o processo de contratação de ponta a ponta para a verificação cuidadosa da legalidade dos atos ali praticados.

 

Registre-se, por extremamente oportuno, que sob a égide da Lei nº 8.666/93 o controle de legalidade, ou poder-se-ia dizer, controle de conformidade, restringe-se apenas à análise da minuta de edital, de contrato, de aditivo, de ajuste, de convênio etc., não havendo detalhamento nem obrigatoriedade sobre a verificação de todo o processo, no que concerne às questões jurídicas, por óbvio, ainda que na prática fosse o mais cuidadoso a se fazer.

 

Sob o manto da nova lei, de outro lado, o papel de controle deverá se dar pormenorizadamente em todo o processo, o que a doutrina denomina de análise jurídica da contratação, conceito que ultrapassa, portanto, os limites exíguos das minutas, sejam elas de edital, de contrato, de aditivo etc. Vê-se, portanto, que a função atípica de controle não só foi mantida pela NLLC como foi ampliada.

 

Nessa linha é possível questionar se a manutenção desta função atípica não vai de encontro não apenas à evolução dos órgãos de controle externo e interno, mas também, como bem lembrado por Anderson Pedra e Ronny Charles Lopes de Torres , à maior ou uma das maiores inovações da novel legislação: o Portal Nacional de Contratações Públicas - PNCP descrito no art. 174 da Lei nº 14.133/2021, sítio eletrônico onde serão armazenados todos os documentos e informações relativas à contratação, desde o seu nascedouro até a sua finalização. Isto porque, em razão da utilização da inteligência artificial (IA) , o próprio sistema fará o trabalho de análise de conformidade dos atos e documentos à lei e aos normativos infralegais aplicáveis, não havendo qualquer sentido que assessores jurídicos, falíveis, ainda se mantenham obrigados a este trabalho muito mais mecânico e burocrático que finalístico, trabalho este que por ser deveras volumoso acaba por relegar a segundo plano, como ocorreu desde o advento da Lei nº 8.666/93, o exercício das funções verdadeiramente típicas da assessoria jurídica.

 

Ilações à parte, muito embora o assessor jurídico tenha recebido mais papéis para desempenhar oficial e obrigatoriamente, é preciso destacar, como dito e discutido em linhas anteriores deste trabalho, que a ele não é dada a possibilidade de imiscuir-se em questões técnicas, sejam elas de competência da área técnica propriamente dita, sejam relacionadas ao juízo de conveniência e oportunidade do gestor público a quem se presta o auxílio.

 

Nas palavras de Joel de Menezes Niebuhr , “conquanto a linha, muitas vezes, seja tênue, a assessoria jurídica não deve se intrometer em aspectos técnicos, porém tratar das exigências legais que circundam e limitam os aspectos técnicos."

 

Sobre este aspecto, vale transcrever a ressalva muito bem explicada por Anderson Pedra e Ronny Charles Lopes de Torres , a ver:

 

[...] embora tenha o parecerista jurídico a incumbência de realizar o controle prévio da legalidade e análise jurídica da contratação, não lhe cabe substituir a decisão do setor técnico, em relação, por exemplo, à solução escolhida do mercado ou mesmo à decisão político-administrativa do gestor público, autoridade competente que, diante das nuances envolvidas no caso concreto, opta por um determinado modelo de contratação admitido pela legislação. A aferição da conveniência e oportunidade pertence à autoridade competente pela tomada de decisão, não ao órgão de assessoramento jurídico ou mesmo aos órgãos de controle. (grifo nosso).

 

Caberá à Advocacia Pública, portanto, no exercício do controle de legalidade da contratação, a verificação eminentemente jurídica do cumprimento das macroetapas do processo de contratação pública que vai além da análise das minutas, não podendo, nesta função, ultrapassar as questões jurídicas para adentrar em questões técnicas que devem ser avaliadas apenas e tão somente por quem possui competência técnica para tanto, ressalvada esta possibilidade, no entanto, caso haja fácil percepção de possível afronta aos princípios definidores das licitações e dos contratos administrativos.

 

2.3.2 DO EXERCÍCIO DAS FUNÇÕES TÍPICAS E O APOIO AOS AGENTES PÚBLICOS. VIÉS DEMOCRÁTICO DA NLLC E A CONSTRUÇÃO DA JURIDICIDADE

 

Até aqui vimos que não compete ao órgão de assessoramento jurídico o poder direto de decisão, sendo este reservado ao gestor e demais agentes públicos que atuam diretamente no processo de contratação pública, muito embora o papel da assessoria jurídica seja, desde o seu nascedouro, o de auxílio à tomada de decisão, auxílio este que, conforme também já visto, restou prejudicado pela disfuncionalidade do controle externo que levou a atuações reativas e, portanto, esvaziadas, não inovadoras.

 

Para Joel de Menezes Niebuhr , “o advogado não exterioriza o que ele acha que deve ser feito, mas o que, de acordo com a sua interpretação, o direito prescreve que deve ser feito.” E completa afirmando que “o parecer não decide nada. Ele, a rigor, oferece os subsídios jurídicos para que a autoridade administrativa decida.”

 

Pois bem. Com a nova lei de licitações e a retomada da sua essência por meio do exercício necessário das funções delegadas pela Constituição Federal de 1988, o que durante todo o trabalho denominamos de funções típicas, o dilema da decisão passou a ser elemento essencial da atuação do advogado público, na medida em que não bastará a ele, quando da consultoria e assessoramento ao agente público, afirmar que no processo de contratação foram verificadas possíveis irregularidades ou até ilegalidades sem que, como consequência, sejam indicadas as possíveis soluções a partir da análise dos riscos que a pretensão administrativa acarretará, ou seja, caberá ao assessor jurídico, em que pese não decida diretamente, enfrentar a decisão do gestor e, quando for o caso, apresentar opções alternativas para efetivas soluções.

 

Percebam que nesta nova forma de atuação haverá, então, a verdadeira prestação de auxílio ao agente público, posto que a ele serão fornecidas, de maneira obrigatória, não apenas a análise dos riscos de sua decisão, mas também as possíveis soluções alternativas, a fim de que seja respeitada a legalidade e seja possível, então, alcançar o verdadeiro intento do processo de contratação pública: o interesse público primário.

 

A Lei nº 14.133/2021, muito embora não seja tão disruptiva como se desejava que fosse, deve, sem dúvidas, ser considerada mais democrática, seja porque permite à Administração Pública, de maneira acertada, um diálogo mais próximo com o mercado, dada a importância de todos os atores e a necessidade de ouvi-los, o que facilitará a diminuição da assimetria de informação , seja porque a nova lei passou a enxergar todos os agentes públicos que atuam no macroprocesso de contratação, conferindo a eles um papel de destaque não apenas em suas atuações finalísticas, mas também no olhar e no auxílio que será dado a todos eles pelo órgão de assessoramento jurídico.

 

A NLLC, assim, previu que o assessoramento jurídico não mais se restringirá ao gestor ordenador de despesas, mas também a todos os agentes que tomam decisões no curso do processo, os auxiliando, inclusive, na própria tomada de decisão.

 

Ora, o que se infere destas significativas inovações na lei é que o legislador federal se preocupou verdadeiramente em conferir incentivos reais e positivos aos agentes públicos para que atuem de forma proativa, resolutiva e deixem para trás a prática do medo e da desconfiança que há muito caminha com todos aqueles que trabalham de forma honesta e responsável, mas que estão expostos a todo tipo de controle meramente punitivo e desconectado da realidade e da proporcionalidade.

 

A cultura do medo tem razão legal e jurisprudencial de ser, o que, por certo, acarreta mais malefícios que benefícios às pessoas, aos processos e à sociedade.

 

Percebam: não se está a criticar a punição de maus gestores que agem com má-fé e dolo, mas a prática punitiva a todo custo sem levar em consideração as condições realmente enfrentadas e as dificuldades dos agentes públicos quando da tomada de decisões.

 

A letra fria da lei nem sempre suprirá as necessidades reais que se apresentam no dia a dia da Administração Pública. Desvios devem ser combatidos, claro, sendo necessário enfatizar, mais uma vez, a necessidade do elemento dolo, em que pese seja óbvio, mas a análise cega e desconectada da realidade, além da interpretação subjetiva e casuística de elementos abstratos da lei ferem não apenas a LINDB e a Constituição Federal, mas geram, também, como uma consequência nefasta, a seleção adversa de agentes públicos, uma vez que os bons não mais se prontificarão a permanecer em cargos essenciais à execução da lei de licitações e contratos.

 

É nesse contexto, então, que o auxílio mais amplo da assessoria jurídica surge como forma de minimizar as consequências da disfuncionalidade do controle excessivamente burocrático e punitivo perpetrado pelos órgãos de controle. Contudo, convém enfatizar que o apoio do órgão de assessoramento jurídico não significará, em qualquer hipótese, a retirada da competência dos agentes públicos para decidir. O próprio nome já diz: auxílio.

 

A atuação mais contundente da assessoria jurídica terá, assim, e pela amplitude da análise (controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação) , o poder de efetivamente conduzir a atuação do gestor e, nesta hipótese, ela trará reflexos e repercutirá caso o ato administrativo venha a ser questionado.

 

Sobre o tema, Anderson Pedra e Ronny Charles Lopes de Torres explicam que “diante de eventual ilegalidade ou ilegitimidade deve o parecerista alertar a autoridade assessorada sobre esse vício, orientando-a a adotar atitudes diversas da pretendida”.

 

É possível afirmar, portanto, que, muito embora a assessoria jurídica não decida diretamente, ela exerce um papel deveras importante e crucial na atuação do gestor e demais agentes públicos tomadores de decisão administrativa, pois ao empregar sua expertise, a qual deve ir muito além da ultrapassada verificação da legalidade estrita, consagrando no caso concreto o princípio da juridicidade, ou seja, necessária verificação com base no Direito como um todo e não apenas no texto literal da lei formal, o órgão de assessoramento jurídico assume um papel ativo no macroprocesso de contratação pública ao auxiliar verdadeiramente os agentes públicos na efetiva solução dos problemas e na consequente entrega à sociedade do bem ou serviço materializador do interesse público primário.

 

É necessário, portanto, um rigoroso trabalho de pesquisa e de hermenêutica por parte da assessoria jurídica, não cabendo mais, repita-se, a atuação chanceladora de cumprimento de normas postas como checklist. Compete à Advocacia Pública, conforme ensinam Anderson Pedra e Ronny Charles Lopes de Torres , “o dever constitucional de aperfeiçoamento da ordem jurídica, aconselhando, persuadindo ou induzindo os agentes públicos a adotarem as providências que conduzam à afirmação do primado dos valores jurídicos e democráticos" e é nesta conjuntura que o Advogado Público, em sua atuação consultiva, “deve apresentar os caminhos permitidos pelo nosso ordenamento jurídico, para a efetivação da decisão gerencial, bem como tomar atitudes necessárias para a correção de ilicitudes e a responsabilização dos culpados. ”

 

2.3.3 A DEFESA DE AGENTES PÚBLICOS PELA ADVOCACIA PÚBLICA COMO INCENTIVO À ATUAÇÃO PROATIVA E EFICIENTE DOS TOMADORES DE DECISÃO. MUDANÇA DE PARADIGMA E A BUSCA PELA REAL EFICIÊNCIA

 

Discutimos no tópico anterior que não cabe mais ao assessor jurídico analisar o processo sob o prisma da legalidade estrita, devendo, para tanto, trabalhar na construção da juridicidade que leva em consideração normas postas, princípios e regras contidas em todo o ordenamento jurídico, a fim de que sejam os problemas efetivamente solvidos e a atuação pública deixe de ser apenas e tão somente chanceladora de normas legais sem eficiência prática e sem entrega real à sociedade.

 

Esta nova postura do órgão de assessoramento jurídico traz benefícios à sociedade, por certo, mas a grande relevância desta mudança não está apenas na alteração de paradigma na atuação do assessor jurídico, mas no reflexo que ela traz na postura dos agentes públicos tomadores de decisão que, agora, contam com um incentivo importante à atuação proativa, inovadora e disruptiva, qual seja: a possibilidade de defesa nas esferas judicial, controladora e administrativa pela Advocacia Pública quando a prática do ato administrativo decorrer da subsunção dos fatos e da necessidade da Administração ao parecer jurídico emitido. Vejamos a dicção do art. 10 da NLLC, ipsis litteris:

 

Art. 10. Se as autoridades competentes e os servidores públicos que tiverem participado dos procedimentos relacionados às licitações e aos contratos de que trata esta Lei precisarem defender-se nas esferas administrativa, controladora ou judicial em razão de ato praticado com estrita observância de orientação constante em parecer jurídico elaborado na forma do § 1º do art. 53 desta Lei, a advocacia pública promoverá, a critério do agente público, sua representação judicial ou extrajudicial. (grifo nosso)

 

A Lei nº 14.133/2021 expressamente prevê que o agente público, a seu critério, ainda que não mais esteja no exercício do cargo, emprego ou função (art. 53, § 2º), poderá ser representado pela Advocacia Pública caso haja questionamentos dos seus atos nas esferas controladora, judicial e administrativa, desde que estes atos, no entanto, tenham sido praticados em estrita observância à orientação constante do parecer jurídico elaborado nos termos do art. 53, § 1º.

 

A regra parece lógica e é! Ora, se o agente público atua em estrita observância ao auxílio prestado pelo órgão de assessoramento jurídico a quem compete o controle prévio de legalidade mediante análise jurídica da contratação, à luz de todo o ordenamento pátrio (juridicidade), nada mais coerente e justo que se tenha estabelecido a regra da possibilidade de defesa deste agente público pelo órgão que o orientou como agir.

 

Há muitos servidores e gestores competentes atuando em licitações e contratos, mas, em razão da disfuncionalidade dos órgãos de controle, estes agentes públicos corretos, honestos e arrojados se mostram tímidos e receosos no agir e no decidir, o que impacta sobremaneira o alcance da eficiência no processo de contratação, afinal de contas, entre inovar e ser responsabilizado, mesmo atendendo ao interesse público, e dormir tranquilo ao negar a inovação, muitos preferem negar, chancelar regras, cumprir tabela, atuar de maneira tímida e muitas vezes reativa, já que, mais adiante, poderá responder pela prática de um ato que, à época, foi considerado perfeito, legal e juridicamente possível segundo a sua própria assessoria jurídica, e receber deste mesmo corpo jurídico a negativa de auxílio para defesa.

 

Percebam que quando se faz um questionamento sobre a legalidade do ato de um agente público, o que se está a enfrentar é a legalidade do próprio ato administrativo e não da pessoa física do agente público. Este atua em nome do Estado e não parece razoável que esse mesmo Estado lhes negue a possibilidade de defesa técnica, uma vez que a vontade posta no processo não era, ou ao menos não deveria ser, a vontade pessoal do agente público e sim do órgão materializado na figura do gestor ou servidor público.

 

Joel de Menezes Niebuhr destaca que a defesa dos agentes administrativos é reflexo para a defesa da própria Administração Pública, “ou seja, a defesa do agente administrativo importa na defesa do ato administrativo e, por via de consequência, na defesa da própria Administração Pública, que é o mister maior da advocacia pública”.

 

Para Marçal Justen Filho , “haveria violação ética se a Administração exigisse que o particular realizasse sacrifícios significativos para o desempenho de suas atribuições e deixasse de lhe assegurar os meios de defesa em caso de dúvidas quanto à atuação dele.” E arremata aduzindo que “se a Administração não assegurar a defesa dos seus agentes, haverá um desincentivo de posições de relevo e de decisões problemáticas.”.

 

Na mesma linha, Anderson Pedra e Ronny Charles Lopes de Torres acrescentam que esse tipo de defesa “favorecerá os agentes públicos honestos e arrojados, que não encontravam incentivo e segurança para tomar decisões não ortodoxas ou arriscadas, mesmo que imbuídas dos mais nobres intuitos de atendimento ao interesse público.”

 

A posição defendida de forma ardorosa pela doutrina é salutar, tendo o legislador federal reconhecido a necessidade de garantir ao agente público, seja ele gestor ou servidor público atuante em quaisquer das etapas do macroprocesso de contratação pública, a segurança jurídica pessoal de que poderão receber, da mesma advocacia pública que orientou a prática do ato administrativo, a sua defesa perante os órgãos controlador, judicial e/ou administrativo.

 

A segurança jurídica aqui destacada além de incentivo positivo à atuação proativa e eficiente dos agentes públicos, se revela, em última análise, como defesa do próprio parecer que deu base jurídica à contratação.

 

Convém ressaltar que esta regra de defesa pela Advocacia Pública não é de todo uma novidade, posto alguns entes federativos já adotarem essa postura, permitindo que a assessoria jurídica atue ao lado do agente público fazendo a sua representação judicial e extrajudicial, a exemplo da Advocacia Geral da União.

 

O fato é que a Lei nº 14.133/2021 trouxe a defesa técnica aos agentes públicos para o âmbito nacional como forma de incentivo a que todos os agentes inovem, sejam arrojados, busquem efetivamente o atendimento do interesse público, maior objetivo do processo de contratação pública.

 

A licitação e o contrato administrativo não servem senão para atender a demanda real da sociedade através da Administração Pública. Cumprir regras dissociadas do objetivo primordial, além de propriamente ilegal, trazem profundos prejuízos ao seu destinatário: toda a sociedade.

 

Munir os agentes públicos de segurança jurídica para agir e decidir é, em última análise, atender ao interesse público primário.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Após longos vinte e oito anos de vigência da Lei nº 8.666/93 disciplinando, de forma geral e nacional, as contratações públicas no país, o legislador federal, atendendo aos reclames dos estudiosos e dos agentes públicos que atuam no âmbito das licitações e contratos, editou a Lei nº 14.133/2021 mais conhecida por Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos - NLLC e o fez de modo a romper, ainda que não completamente, a postura burocrata, engessada e, por muitas vezes, desconfiada do regime inaugurado pela lei geral de 1993.

 

A NLLC, percebendo a necessidade de ampliar a flexibilidade inaugurada pela Lei do RDC em 2011 (Lei nº 12.462/2011), a inovadora condução das compras com inversão de fases revelada pela Lei do Pregão (Lei nº 10.520/2002) e da dialogicidade trazida pela Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016), além das inovações contidas em regulamentos e instruções normativas federais e da jurisprudência, especialmente do Tribunal de Contas da União, absorveu esse novo modo de enxergar o trajeto da compra pública para permitir um maior diálogo com o mercado privado, a fim de, entendendo e aceitando a sua racionalidade limitada, diminuir a assimetria de informações e minimizar, assim, a perda de eficiência no processo e na condução dos contratos firmados, atendendo melhor, não podemos garantir perfeição, o fim precípuo da contratação: o interesse público.

 

Certo é que a nova lei, em que pese mais analitica que maximalista, como é a Lei nº 8.666/93, traz consigo, ainda, parcela de desconfiança, de burocracia, de olhar para o passado, tendo perdido a oportunidade, assim como o regime anterior, de se mostrar mais conectada à tecnologia, à fluidez do mercado fornecedor e aos conceitos e visões econômicas necessárias ao processo de contratação pública.

 

De todo modo, é uma lei a ser comemorada, posto ser muito mais arrojada que a emperrada Lei nº 8.666/93. Aliás, arrojo é uma postura que há muito o mercado exige do agente público, mas quase que impossível de se ver na prática, seja em virtude das disposições legais rígidas que acabam por impor uma conduta apenas mecânica de cumprimento de regra sem a devida funcionalidade, seja em razão das manifestações subjetivas e casuísticas dos órgãos de controle por vezes castradora e desconectada da realidade vivenciada pelos atores da contratação no dia a dia da Administração.

 

Esta paralisação por medo da responsabilização enrijeceu a atuação do agente público e do gestor que passaram a preferir atitudes muito mais reativas e autoprotetoras, afinal de contas, em que pese atuem em nome do Estado, quando da ocorrência de impugnações controladoras, judiciais e administrativas, o servidor público se vê isolado, relegado à sorte de se defender sozinho de um ato que não corresponde à sua vontade, mas à vontade do ente público.

 

Nesse contexto, e como forma de minimizar a disfuncionalidade do controle eminentemente punitivo é que a NLLC trouxe a disposição, em seu art. 10, de que se as autoridades competentes e os servidores que tiverem participado dos procedimentos relacionados às licitações e aos contratos de que trata esta Lei precisarem defe