INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO E CREDENCIAMENTO DE PERITOS PARA A JUSTIÇA GRATUITA
RESUMO: O novo Código de Processo Civil, publicado no ano de 2015, ao tratar da nomeação dos peritos, trouxe normatividade diferente do código anterior. Com o fim de promover uma harmonização entre o Processo Civil e o Direito Administrativo, a novel legislação processual traz em suas letras regras irmanadas às diretrizes e princípios que regulam a atividade administrativa, mormente quando da indicação de peritos para atuar em processos judiciais cuja parte é beneficiária da justiça gratuita.
PALAVRAS-CHAVE: Processo Civil. Peritos. Justiça gratuita. Contratação pública. Direito Administrativo.
INTRODUÇÃO
O Direito, como ordenamento jurídico, é reflexo e estudo dos interesses da sociedade, segundo já dizia o velho axioma ubi societas, ubi jus[1]. Onde houver coletividade haverá o Direito a regular a vida, ainda que incipiente e sem normas postas num papel. Em verdade, vai muito além, é bem mais amplo, próprio da necessidade de todo ser que habita o planeta, seja neste tempo, passado ou futuro, como bem assevera o professor Miguel Reale:
Admitido que as formas mais rudimentares e toscas de vida social já implicam um esboço de ordem jurídica, é necessário desde logo observar que durante milênios o homem viveu ou cumpriu o Direito, sem se propor o problema de seu significado lógico ou moral. É somente num estágio bem maduro da civilização que as regras jurídicas adquirem estrutura e valor próprios, independente das normas religiosas ou costumeiras e, por via de consequência, é só então que a humanidade passa a considerar o Direito como algo merecedor de estudos autônomos (REALE, 2002).
Nesse passo, o Direito busca englobar todas as atividades humanas que causem repercussão na vida social. Para fins didáticos, compartimenta suas espécies e ramos de acordo com a natureza do objeto de interesse. Contudo, no dia a dia, a dinâmica natural da coexistência coletiva leva os indivíduos a praticarem diversos atos de diferentes categorias, às vezes numa só e mesma conduta. Aí, aquela separação de matérias jurídicas esvai-se e dá lugar ao real modo de efetivação do Direito, no todo, inteiro, completo.
O que se verá no estudo a seguir é a constatação da harmonização jurídica do Direito, representada aqui pela interseção entre Direito Processual Civil e Direito Administrativo, produzida na figura da nomeação de perito judicial em processo cuja parte é beneficiária da justiça gratuita, conforme o regramento esculpido pelo novo Código de Processo Civil.
1 A INTERSEÇÃO ENTRE O PROCESSO CIVIL E O DIREITO ADMINISTRATIVO
Em que pese a prestação jurisdicional ser, em sentido amplo, um serviço público — porquanto realizado pelo Estado e a todos disponível —, a função de dizer o direito tem especificidades próprias que a distinguem da função administrativa. Cada uma envereda-se por caminhos singulares que, aqui e ali, eventualmente, se tocam porque originadas do mesmo ponto de partida, o Estado.
Nessa ordem de ideias, o Direito Processual é quem concretiza, em grande parte, a função jurisdicional, ao passo que o Direito Administrativo, a função administrativa do Estado. Assim, tais disciplinas jurídicas podem, ou melhor, devem harmonizar-se quando essas duas linhas de atuação estatal se encontrar. É o que efetivamente ocorre, por exemplo, na nomeação de perito para prestar serviço em nome de parte beneficiária da Justiça gratuita. Haverá, em razão do encontro mencionado, uma simbiose de ideias processuais e administrativas sob o mesmo objeto, de maneira que prevaleça, no caso concreto, aquela que de maior interesse apontar a situação. Tal qual uma disputa entre princípios, não existe aí, inicialmente, preferência certa, como asseverou Robert Alexy:
"Se dois princípios colidem – o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com outro, permitido -, um dos princípios terá de ceder. Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face de outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos, os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com maior peso têm precedência" (ALEXY, 2008).
Malgrado não haja, aqui, conflito ou colisão, a solução indicada pelo mestre alemão também se aplica. A hipótese ora estudada, em verdade, reflete a configuração de maior peso às balizas do Direito Administrativo, de modo que caberá ao Direito Processual tomar-lhe emprestado suas regras. Embora transcorra a nomeação de perito no bojo de um processo judicial, a bem da verdade, o magistrado promove uma contratação pública, conforme se depreende da Lei nº 8.666/93 e da Lei nº 14.133/2021. O Direito Processual, portanto, cederá seu espaço para encontrar, no Direito Administrativo, a alternativa eficaz. É a integração e a efetivação do Direito como um só.
Não poderia mesmo haver outra solução. O dispêndio de recursos públicos para custear esta ou qualquer contratação clama pela aplicação dos princípios norteadores da Administração Pública, tais como a indisponibilidade do interesse público, a impessoalidade e a isonomia, além, obviamente, do consagrado instituto da licitação, conforme prevê a Constituição Federal:
Art. 37, XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
De estatura constitucional, a licitação é a regra acerca da contratação pública, o que, em palavras fáceis, significa promover uma disputa entre pessoas qualificadas cujo vencedor será quem apresentar a proposta mais vantajosa à Administração. Com raiz fincada na igualdade e na impessoalidade, a licitação é a melhor forma de selecionar os futuros contratados do Estado.
2 BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA
O benefício da Justiça gratuita, direito elementar concedido ao cidadão desprovido de recursos suficientes, foi regulamentado pela Lei nº 1060/50 cujos artigos 2º e 3º definem, respectivamente, quem são as pessoas beneficiadas e quais são as isenções concedidas, in verbis:
Art. 2º. Gozarão dos benefícios desta Lei os nacionais ou estrangeiros residentes no país, que necessitarem recorrer à Justiça penal, civil, militar ou do trabalho.
Parágrafo único. Considera-se necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família.
Art. 3º. A assistência judiciária compreende as seguintes isenções:
I - das taxas judiciárias e dos selos;
II - dos emolumentos e custas devidos aos Juízes, órgãos do Ministério Público e serventuários da justiça;
III - das despesas com as publicações indispensáveis no jornal encarregado da divulgação dos atos oficiais;
IV - das indenizações devidas às testemunhas que, quando empregados, receberão do empregador salário integral, como se em serviço estivessem, ressalvado o direito regressivo contra o poder público federal, no Distrito Federal e nos Territórios; ou contra o poder público estadual, nos Estados;
V - dos honorários de advogado e peritos.
VI – das despesas com a realização do exame de código genético – DNA que for requisitado pela autoridade judiciária nas ações de investigação de paternidade ou maternidade.
VII – dos depósitos previstos em lei para interposição de recurso, ajuizamento de ação e demais atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório.
Parágrafo único. A publicação de edital em jornal encarregado da divulgação de atos oficiais, na forma do inciso III, dispensa a publicação em outro jornal.
A lei supra é clara ao discorrer sobre a gratuidade para os considerados necessitados, quanto às despesas de honorários de peritos. Ordena, ainda, uma série de prerrogativas que a condição social deficitária confere à parte beneficiada.
Direito afiançado pela Constituição Federal, ao menos indiretamente, a gratuidade judiciária reluz aspecto socioeconômico do efetivo acesso à Justiça. Transpõe a barreira dos altos custos processuais para possibilitar aos cidadãos mais carentes a condição de parte em uma demanda judicial[2]. A Carta Maior, no Título II - Dos Direitos e Garantias Fundamentais, em seu artigo 5º, introduz o tema da seguinte forma:
XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas:
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder;
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;
XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
Não há consagração expressa no texto. É por meio da interpretação sistemática calcada nos dizeres “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, na subscrição do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário — “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” — e na isenção de taxas para a “defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder” que é construída a garantia da justiça gratuita. A exegese, dessa forma, permite inferir que a Constituição Federal de 1988 recepcionou a Lei nº 1.060/1950, editada ao tempo da Carta Maior de 1946 e mantida pelas constituições subsequentes.
Outrossim, a regulamentação também arregimenta regras processuais consentâneas com a norma de 1950, esculpidas pelo novo Código de Processo Civil, o qual dispõe acerca do benefício da justiça gratuita e, a partir do artigo 98, assegura a isenção do pagamento dos honorários periciais. Prevê, além disso, como será custeada a referida despesa, segundo dispõe o art. 95:
§ 3o Quando o pagamento da perícia for de responsabilidade de beneficiário de gratuidade da justiça, ela poderá ser:
I - custeada com recursos alocados no orçamento do ente público e realizada por servidor do Poder Judiciário ou por órgão público conveniado;
II - paga com recursos alocados no orçamento da União, do Estado ou do Distrito Federal, no caso de ser realizada por particular, hipótese em que o valor será fixado conforme tabela do tribunal respectivo ou, em caso de sua omissão, do Conselho Nacional de Justiça.
Em tópico próprio os artigos do Código Processual de 2015 serão melhor tratados doravante, após o enfrentamento de assuntos preliminares e indispensáveis ao pleno entendimento.
3 A CONTRATAÇÃO PÚBLICA
A regulamentação da justiça gratuita tanto por lei específica quanto pelo Código de Processo Civil tem garantido a eficácia deste direito frente ao Poder Judiciário pátrio. A concessão do benefício é prática comum nas cortes brasileiras, malgrado os intensos debates acerca de seus requisitos e forma de demonstração[3], o que repercute diretamente nas esferas administrativa e financeira dos tribunais de justiça.
O art. 95 supra é explícito ao imputar ao Poder Público as despesas resultantes da nomeação de perito judicial para o beneficiário da justiça gratuita. Observe, assim, que esta nomeação, paga com recursos públicos, é, na verdade, uma contratação pública efetuada pelo Estado, necessária ao exercício da atividade jurisdicional. Nesse passo, bem esclarece a Lei nº 8.666/93, que versa sobre as normas gerais de licitações e contratos:
Art. 2º As obras, serviços, inclusive de publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.
Não há dúvida quanto a isso. O Poder Judiciário realizará uma contratação pública por meio da indicação e consequente nomeação de profissional capacitado para atuar como perito em processo judicial, em benefício de parte favorecida com a justiça gratuita.
A Lei nº 14.133/2021, a nova lei de licitações e contratos, não apresentou uma definição de contrato administrativo, embora possua um rol imenso de definições previstas em seu art. 6º. Mas mesmo que o tivesse feito, ouso afirmar que não o definiria diferente do que já está sedimentado no meio jurídico. Para ilustrar, segue o conceito de contrato administrativo proposto pelo ilustre mestre Hely Lopes Meirelles:
Contrato administrativo é o ajuste que a Administração Pública, agindo nessa qualidade, firma com particular ou com outra entidade administrativa para a consecução de objetivos de interesse público, nas condições estabelecidas pela própria Administração (cap. V, item I). É sempre bilateral, no sentido de que há duas partes com objetivos diversos: uma, a Administração, que pretende o objeto contratado (obra, serviço etc.); outra, que almeja receber a contraprestação (preço ou qualquer outra vantagem correspondente). Não importa que os contratantes sejam vários: o contrato é sempre bilateral, porque só admite duas posições para as partes, sendo uma credora da outra do encargo ou prestação que assumiu (MEIRELLES, 2011).
Esmiúça ainda mais o doutrinador ao detalhar que:
"O contrato administrativo é sempre consensual e, em regra, formal, oneroso, comutativo e realizado intuitu personae. É consensual porque consubstancia um acordo de vontades, e não um ato unilateral e impositivo da Administração; é formal porque se expressa por escrito e com requisitos especiais; é oneroso porque remunerado na forma convencionada; é comutativo porque estabelece compensações recíprocas e equivalentes para as partes; é intuitu personae porque deve ser executado pelo próprio contratado, vedadas, em princípio, a sua substituição por outrem ou a transferência do ajuste" (MEIRELLES, 2011).
Ninguém é obrigado a ser perito judicial. Se o faz é porque quer, seja qual motivo for: se para simplesmente exercer seu ofício, ou desejo de auxiliar à prestação jurisdicional a solucionar uma querela, ou ainda unicamente pela remuneração a receber, não importa. Deve haver o consenso. Deverá também ser escrito, oneroso, comutativo e pessoal, como bem explicado pelo excerto da melhor doutrina acima transcrita.
Esta é a configuração padrão de um contrato administrativo. Contudo, a Lei nº 8.666/93 trouxe alternativa à formatação paradigma, nos seguintes termos:
Art. 62. O instrumento de contrato é obrigatório nos casos de concorrência e de tomada de preços, bem como nas dispensas e inexigibilidades cujos preços estejam compreendidos nos limites destas duas modalidades de licitação, e facultativo nos demais em que a Administração puder substituí-lo por outros instrumentos hábeis, tais como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço.
A Lei nº 14.133/2021 seguiu o mesmo caminho:
Art. 95. O instrumento de contrato é obrigatório, salvo nas seguintes hipóteses, em que a Administração poderá substituí-lo por outro instrumento hábil, como carta-contrato, nota de empenho de despesa, autorização de compra ou ordem de execução de serviço: (...)
Veja: é possível contratar sem firmar um instrumento de contrato. O instrumento é apenas um meio, um caminho, uma forma de concretizar o verdadeiro acordo de vontades. Tal dispositivo, em realidade, ratifica os dizeres do parágrafo único do art. 2º já mencionado anteriormente quando diz que é contrato, “seja qual for a denominação utilizada”, “qualquer ajuste entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações recíprocas”. A essência é o que prevalece diante da forma. Não por outro motivo que, a título de exceção, mas ainda assim permitido, a Lei Geral de Licitações e Contratos previu a contratação verbal, nos seguintes termos:
Art. 60. Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no art. 23, inciso II, alínea “a” desta Lei, feitas em regime de adiantamento (grifos nossos).
A nova lei de licitações e contratos traz dispositivo semelhante:
Art. 95, § 2º É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras ou o de prestação de serviços de pronto pagamento, assim entendidos aqueles de valor não superior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).
Destarte, substancialmente, mesmo fora dos contornos enunciados pela regra legal, a nomeação de perito judicial configura uma contratação pública e seu proceder obedece aos ditames legais previstos na Lei nº 8.666/93 e na Lei nº 14.133/2021.
4 CREDENCIAMENTO COMO INEXIGIBILIDADE DE LICITAÇÃO
A Carta Magna previu a licitação como o modus operandi ordinário à aquisição de bens e serviços pelo Poder Público. Entretanto, autorizou a legislação a especificar os casos ressalvados de sua regra geral, como expressamente o diz o art. 37, XXI acima transcrito. Assim, a Lei nº 8.666/93 definiu, dentre outras hipóteses excepcionadas, os casos em que a licitação é inexigível do administrador público, em razão da inviabilidade de competição, segundo dicção do seu art. 25:
Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
I - para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;
II - para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta Lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III - para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.
À primeira vista, uma leitura desatenta leva a crer que o dispositivo aponta apenas três casos de inexigibilidade de licitação. Contudo, a expressão “em especial”, no final do caput, aduz que os incisos à frente são as situações mais comuns, mais corriqueiras, merecedoras de maior atenção do legislador. A interpretação, portanto, deste artigo sustenta que será inexigível toda licitação que não permita competição, de modo que o elenco explicitado no corpo da lei possui, tão-somente, caráter exemplificativo[4].
Bem assim o é, que é fácil constatar outras hipóteses de inviabilidade de competição, como, por exemplo, a necessidade de o Poder Público contratar profissionais pelo instituto do credenciamento. Segundo ensina o ilustre Marçal Justen Filho:
"(...) não haverá necessidade de licitação quando for viável um número ilimitado de contratações e (ou) a escolha do particular a ser contratado não incumbir à própria Administração. Isso se verificará especialmente quando uma alternativa de contratar não for excludente de outras, de molde que a Administração disponha de condições e promover contratações similares com todos os particulares que preencherem os requisitos necessários. (...) Nessas hipóteses, em que não se verifica a excludência entre as contratações públicas, a solução será o credenciamento" (JUSTEN FILHO, 2012, p. 48).
Decorrente de construção doutrinária e jurisprudencial, o credenciamento, agora, possui assento legal, conforme art. 6º, XLIII, art. 74, IV e art. 79, só para citar alguns que lidam com este tema na nova lei de licitações e contratos.
Exemplo elucidativo é a contratação pela Administração Pública de clínicas de saúde para prestar serviços médicos à população pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. Como o Estado não possui hospitais nem médicos suficientes, disponibiliza um credenciamento para clínicas particulares atenderem os conveniados do SUS. Paga-lhes um valor preestabelecido e os enfermos escolhem onde querem ir.
A premissa é: não há competição porque o objetivo é contratar o máximo possível. Não há exclusão. Ao contrário. Quanto mais, melhor. Assim, a disputa é inviável uma vez que não interessa selecionar a proposta mais vantajosa, mas acordar com todos aqueles que sejam aptos a desenvolver o serviço desejado pelo Poder Público. Para isso, a Administração Pública precisa regulamentar o instituto com o fim de: a) lançar edital; b) estabelecer os critérios mínimos necessários; c) normatizar os requisitos de habilitação; d) prever a forma de escolha dos profissionais e e) possibilidade de tabelar os valores a serem pagos pelos serviços prestados.
5 O CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015 E O CREDENCIAMENTO
Concedido espaço do Direito Processual ao uso de normas do Direito Administrativo, o Código de Processo Civil de 2015, alinhado às diretrizes daquele ramo, traz, entre as regras que regem a indicação do perito judicial, os requisitos fundamentais do instituto do credenciamento, logo acima discriminadas:
Art. 156. O juiz será assistido por perito quando a prova do fato depender de conhecimento técnico ou científico.
§ 1o Os peritos serão nomeados entre os profissionais legalmente habilitados e os órgãos técnicos ou científicos devidamente inscritos em cadastro mantido pelo tribunal ao qual o juiz está vinculado.
§ 2o Para formação do cadastro, os tribunais devem realizar consulta pública, por meio de divulgação na rede mundial de computadores ou em jornais de grande circulação, além de consulta direta a universidades, a conselhos de classe, ao Ministério Público, à Defensoria Pública e à Ordem dos Advogados do Brasil, para a indicação de profissionais ou de órgãos técnicos interessados.
(...)
§ 5o Na localidade onde não houver inscrito no cadastro disponibilizado pelo tribunal, a nomeação do perito é de livre escolha pelo juiz e deverá recair sobre profissional ou órgão técnico ou científico comprovadamente detentor do conhecimento necessário à realização da perícia.
Art. 157. O perito tem o dever de cumprir o ofício no prazo que lhe designar o juiz, empregando toda sua diligência, podendo escusar-se do encargo alegando motivo legítimo.
§ 1o A escusa será apresentada no prazo de 15 (quinze) dias, contado da intimação, da suspeição ou do impedimento supervenientes, sob pena de renúncia ao direito a alegá-la.
§ 2o Será organizada lista de peritos na vara ou na secretaria, com disponibilização dos documentos exigidos para habilitação à consulta de interessados, para que a nomeação seja distribuída de modo equitativo, observadas a capacidade técnica e a área de conhecimento.
O §2º do art. 156 fala em consulta pública e da ampla divulgação que deve ser feita com o fim de atrair o maior número possível de profissionais interessados em exercer a perícia judicial. Esse é o ponto chave para caracterizar a inexigibilidade de licitação e ratificar o instituto do credenciamento como instrumento jungido aos princípios-mãe da licitação: igualdade e impessoalidade. O número reduzido de profissionais filiados ao cadastro levanta suspeitas sobre possível direcionamento e favorecimento, o que pode caracterizar o crime previsto no art. 337-E do Código Penal. Dessa forma, é fundamental lançar periodicamente edital com divulgação maciça na rede mundial de computadores e em jornais de grande circulação. Também não vejo problema algum em divulgar nas redes sociais.
Outrossim, tão basilar quanto ter grande lista de credenciados é realizar método equitativo de nomeação. É o que prevê o art. 157, §2º. Não adiantaria vasto rol se apenas alguns escolhidos fossem sempre os indicados, sob pena de incorrer, também, no crime de contratação direta ilegal. A título exemplificativo, a Resolução nº 35/2006 do Tribunal de Justiça de Sergipe estabelece um sorteio entre os peritos cadastrados, de forma que o sorteado numa rodada não participará da seguinte. Esta metodologia de seleção oportuniza a participação de todos os credenciados, sem incorrer em tratamento privilegiado.
De volta ao art. 156, o seu §1º menciona a habilitação dos profissionais inscritos no cadastro. O Tribunal de Justiça será o responsável por editar norma acerca do credenciamento, tal qual a Resolução nº 35/2006 do TJSE. Como dito acima, lá devem estar previstos os requisitos de habilitação para se cadastrar como perito. São documentos como diploma universitário, certificado de especialista, registro no órgão técnico de fiscalização profissional, cadastro de pessoa física, dentre outros. Apesar de o objetivo ser contratar o maior número possível, a Corte judicial não pode ficar à mercê de profissionais desqualificados ou desprovidos de conhecimentos técnicos suficientes à atividade pericial. Caberá, assim, em acurado juízo discricionário, arrolar os documentos que assegurem a qualidade do futuro cadastrado, sem, no entanto, restringir demasiadamente a participação dos interessados.
O art. 95, §3º, II, transcrito linhas atrás, apresenta o último elemento essencial para a aplicação regular do credenciamento: o tabelamento de preços. A norma interna do tribunal também deverá estabelecer os valores a serem pagos pelas perícias judiciais, conforme as especialidades cadastradas. Do mesmo modo, tal qual a Resolução nº 35/2006 do Tribunal de Justiça de Sergipe, poderá autorizar os juízes a ultrapassar a quantia fixada na tabela, sob o argumento do grau de especialização e complexidade da perícia, ou ainda em razão da sua localidade.
Frise-se que o que sustenta a fixação de tabela de honorários é a obrigação do promover o tratamento uniforme entre os contratados. Como visto, os princípios da impessoalidade e da igualdade são as balizas-mestras da licitação, de modo que em qualquer procedimento de contratação pública, mesmo nas hipóteses de inexigibilidade, eles devem ser observados na maior medida possível.
Por último, vejamos a exceção guardada pelo art. 156, §5º. Segundo o artigo, poderá o juiz nomear perito livremente, quer dizer, alheio a toda sistemática do credenciamento, quando na localidade não houver profissional cadastrado, desde que recaia “sobre profissional ou órgão técnico ou científico comprovadamente detentor do conhecimento necessário à realização da perícia”, na dicção do dispositivo. Salutar a ressalva. As amarras legais, próprias do cauteloso Direito Administrativo, não poderiam impedir o magistrado de promover a justiça, seu ofício natural. Observe, contudo, a condição prevista na norma, o que impõe um limite à liberdade de escolha da autoridade julgadora.
Neste caso, em não havendo profissional credenciado para prestar o serviço, deve-se lançar mão da inexigibilidade de licitação para a contratação de serviço técnico especializado, conforme aponta o art. 74, III, “b”, da Lei nº 14.133/2021. Se o órgão ainda opera a Lei nº 8.666/93, o dispositivo a ser aplicado é o art. 25, II, c/c art. 13, II.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por todo o exposto acima, claro estão os efeitos positivos da efetivação una do ordenamento jurídico. Em tempos de especialização cada vez mais profunda dos ramos do Direito, volver os olhos à origem da matéria é atitude saudável, que pode abrir portas e solucionar problemas pontuais. A interseção entre as disciplinas jurídicas com a concessão de espaço normativo cria alternativas aos reclamos da atual vida social.
Portanto, é importante reafirmar: as normas do novel codex vêm ao encontro dos preceitos do Direito Administrativo, mormente àqueles voltados à licitação e à consequente contratação. O juiz não apenas pratica atos processuais, mas, também, atos administrativos. Malgrado seja um encargo dos órgãos internos das cortes judiciais, não será crível admitir que o magistrado venha a desconhecer o processo de escolha dos peritos e a natureza administrativa ínsita ao credenciamento. Em verdade, a legislação processual demorou a editar as regras acima estudadas, permitindo a nomeação de peritos judiciais alheia aos princípios do direito público.
Antes tarde do que nunca, diz a sabedoria popular. A aplicação correta das normas esculpidas pelo novo Código de Processo Civil resultará no respeito aos princípios norteadores da Administração Pública e num consequente avanço na gestão dos bens e recursos públicos, afinal os magistrados e o próprio Poder Judiciário, representantes que são do Estado, não podem estar alheios ao imperativo de eficiência da máquina administrativa.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Editora Fabris, 1988.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo, Ed. Lumern Juris, 23. ed., 2010
JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 15. ed., São Paulo: Dialética, 2012.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 37. ed. atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros, 2011.
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002
[1] Acrescenta o eminente professor MIGUEL REALE: “A recíproca também é verdadeira: ubi jus, ibi societas, não se podendo conceber qualquer atividade social desprovida de forma e garantia jurídicas, nem qualquer regra jurídica que não se refira à sociedade”. (Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 18.
[2] Para aprofundamento em tão vasto tema: CAPPELLETTI, Mauro e GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Editora Fabris, 1988. Os estudos dos professores Mauro Cappelletti e Bryant Garth no consagrado opúsculo dão conta que três foram as soluções implementadas pelos países ocidentais para resolver os problemas de acesso ao Judiciário. As chamadas ondas renovatórias seguiram, mais ou menos, em ordem cronológica a começar pela “onda” intitulada “assistência judiciária para os pobres”, na qual os doutrinadores analisaram os modelos de assistência judiciária de diversos países do mundo. As outras duas são, respectivamente, “representação dos interesses difusos” e “enfoque do acesso à justiça”.
[3] Doutrina e jurisprudência debatem acerca do tema em razão do que diz a Lei nº 1060/50 (Art. 4º. A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família) e as consequências que a declaração pode gerar como a postulação aventureira de demandas judiciais pela ausência de risco pecuniário, e o custo que se reverte à toda a população.
[4] Também assim entende JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO: “A interpretação que nos parece correta é a de que, firmada a regra pela qual na inexigibilidade é inviável a competição, a lei tenha enumerado situações especiais nos incisos I a III de caráter meramente exemplificativo, não sendo de se excluir, portanto, outras situações que se enquadrem no conceito básico” (Manual de direito administrativo, Ed. Lumern Juris, 23. ed., 2010, pp. 290/291).