Até quando posso publicar edital pelas
Até quando posso publicar edital pelas "leis velhas"?

Por Bruno Maciel de Santana 

 

Até quando será possível publicar edital pelas leis velhas? Será possível publicar edital regido pela Lei nº 10.520/2022 após 01/04/2023, dia em que a nova lei de licitações passa a ser obrigatória?

 

Entendo que não. Após esta data, licitação nova deve ser regrada pela Lei nº 14.133/2021. Então, o prazo máximo para publicar os editais pelas "leis velhas" seria 31/03/2023. Agora, vamos às consequências desse entendimento.

 

Primeira consequência: a fase interna, aquela que precede à publicação do edital, deve ser iniciada bem antes do prazo fatal. Isso se deve porque esta etapa inicial da contratação pública pode durar bastante tempo a depender da complexidade da demanda e do objeto escolhido.

 

Se você deixar para iniciar o processo, pelas "leis velhas", em fevereiro ou março de 2023, por exemplo, corre enorme risco de o edital ser publicado após 01/04/2023, momento em que as licitações lançadas devem ser reguladas apenas pela nova lei.

 

Segunda consequência: a publicação do edital deve ser o parâmetro cronológico para fins de aplicação da lei.

 

Há precedente do Tribunal de Contas da União, em julgado referente à Lei nº 13.303/2016 (Acórdão nº 2279/2019 - Plenário), que considerou a publicação do edital como o marco temporal de aplicação da lei, seja a nova ou as "velhas". Outrossim, recentemente, em 31 de agosto de 2022, a Secretaria de Gestão do Governo Federal publicou o comunicado nº 10/2022 que adota este mesmo entendimento.

 

A publicação do edital é momento único e de fácil identificação. Trata-se de dado claro e preciso no tempo. Por outro lado, a fase interna alonga-se no tempo e varia conforme a demanda. Se a fase interna for o parâmetro, haverá edital publicado após 01/04/2023 regrado pelas "leis velhas", porque o órgão iniciará o processo próximo ao prazo final. Isso causará confusão entre servidores e licitantes, além de grande insegurança jurídica.

 

Portanto, em razão disso, será preciso antecipar a aplicação da NLLC (terceira consequência). Não se pode esperar para abril de 2023. Aliás, recomendo que ainda em 2022 comecem a ser iniciados processos sob a égide da NLLC.

 

"Mas, professor, a fase de planejamento já deve ser construída conforme a lei que se deseja aplicar, não é?"

 

Sim, exatamente. Para não haver mistura de leis, todo o processo deve seguir com apenas um regime legal, desde seu início. Eis mais um motivo para implantar logo a NLLC em seu órgão: o planejamento (fase interna) já tem de ser confeccionado conforme a nova lei. E, para que dê tempo, ele deve ser iniciado meses antes de 01/04/2023.

 

Há, entretanto, quem defenda a tese segundo a qual os órgãos poderão iniciar processos administrativos de licitação ou contratação direta até o dia 31/03/2023, sob a égide das leis velhas. O argumento sustenta que o art. 191 da Lei nº 14.133/2021 admite que os órgãos tenham até a data fatal para licitar ou contratar diretamente pelo regime legal antigo ou pelo novo. Fundamenta-se que o legislador utilizou o verbo “licitar” de modo que o marco inicial do processo de licitação seja a sua abertura, a partir da fase de planejamento. Assim, aberto o processo, a licitação já tem início, o que seria suficiente para atender à regra do art. 191.

 

Não há dúvidas de que o processo de contratação tem início na fase de planejamento, etapa mais importante, inclusive. No entanto, é preciso fazer as seguintes ponderações a respeito deste entendimento:

 

a) O legislador não condicionou o uso da legislação à abertura do processo, mas ao momento da opção feita.

 

i. O texto do art. 191 da Lei nº 14.133/2021 diz que até o dia 31/03/2023, “a Administração poderá optar por licitar ou contratar diretamente de acordo com esta Lei ou de acordo com as leis citadas no referido inciso”. Sim, ao abrir o processo, em regra, o gestor já fez sua opção. Contudo, a fase interna pode sofrer diversas modificações ao longo de seu trâmite, como a escolha do procedimento, das especificações técnicas, do próprio objeto e até das normas aplicáveis. A discricionariedade dá a tônica a esta fase, o que possibilita sua mutação até o encontro do desenho processual mais adequado. De tal modo, durante o período de transição, nada impede de o processo ser aberto sob um regramento e ser modificado para outro.

 

ii. Diferentemente, a publicação do edital dá a certeza de todos os fatores concernentes à contratação futura. Sua roupagem, sua estrutura e suas normas de regência estão determinadas. Não por outro motivo que o legislador disse que “a opção escolhida deverá ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta”. O legislador condicionou a escolha do gestor a este momento, oficializando-a nesta etapa e a partir destes instrumentos, em face da segurança e certeza que proporciona.

 

iii. Por esta linha de raciocínio, alterações no edital, depois de 01/04/2023, que não modifiquem seu regime legal, entendo, devem permanecer sob o mesmo regramento porque consubstancia um “longa manus” do primeiro instrumento convocatório publicado. No entanto, recomenda-se providenciar o quanto antes os ajustes necessários e realizar logo a nova publicação, sob pena de perder seu sentido de continuação. Se as alterações forem profundas que demandem novos estudos, o processo deverá seguir pela nova legislação;

 

b) Aceitar o início do planejamento como marco para utilização da nova lei gera consequências nefastas e distantes da lei:

 

i. Insegurança jurídica em face da incerteza temporal da fase interna – Sem momento certo para findar, a fase de planejamento não é um marco preciso e seguro para considerar a escolha da legislação. Com efeito, admitir tal tese é aceitar que inúmeros processos de contratação regidos pelas leis velhas tenham seus editais publicados após 01/04/2023, o que gera confusão entre órgãos e licitantes, com a possibilidade de sobrevirem diversas impugnações e pedidos de esclarecimento, sujeitos até a judicialização. Com efeito, grande insegurança jurídica pode surgir daí;

 

ii. Extensão indevida da fase de transição – Se for aceito o argumento de que os processos regrados pelas leis velhas possam ser iniciados até 31/03/2023, a transição legal não terá dia certo para acabar. Como a etapa de planejamento não possui prazo definido, muitos processos podem durar meses e até anos antes mesmo de o edital ser publicado. Por consequência, o lapso temporal de 02 anos de transição não será obedecido, uma vez que ambos os regimes permanecerão sendo aplicados ao sabor da ineficiência dos órgãos. Poderão haver processos em tramitação, fundados nas leis anteriores, mesmo em 2024, por exemplo, cujos editais sequer tenha sido publicados;

 

iii. Inobservância da ultratividade legal – a ultratividade das leis antigas só foi permitida para os contratos firmados antes de 01/04/2023, conforme, expressamente, registra o parágrafo único do art. 191 da Lei nº 14.133/2021. A única exceção indicada pelo dispositivo são os contratos regidos pelas leis anteriores. Não houve permissão para que os processos administrativos fossem estendidos após a revogação das normas, o que deve ser expresso e não, implícito. Em tese, nem os editais das leis velhas deveriam ser admitidos após aquela data. No entanto, tal exigência beira o impossível no âmbito da administração pública brasileira. Todos os processos, neste caso, deveriam iniciar e findar (planejamento e seleção do fornecedor) antes de 01/04/2023, o que exigiria excepcional nível de planejamento, algo muito raro senão inédito no país;

 

iv. Inobservância do espírito da nova lei de licitações e contratos – a nova lei clama por melhor planejamento, organização e governança das instituições. Não é coerente, assim, defender o improviso de se iniciar processo de contratação, regido pelas leis antigas, às vésperas de sua revogação. Ora, a concessão de 02 anos de transição legislativa foi ofertada, justamente, para que houvesse aprendizado, estruturação e planejamento. Dar esta abertura é, em outras palavras, concordar com a negligência de gestores e órgãos que desprezaram o período de transição;

 

v. Adiantamento malicioso de processos – a julgar pelo histórico da gestão pública brasileira, não seria estranho órgãos iniciarem o máximo de processos administrativos possíveis, todos sob o manto das normas antigas, para o fim de não aplicar a nova legislação. Bastaria produzir um ofício, memorando, comunicação interna, documento de formalização de demanda ou qualquer outro, antes data fatal e dar seguimento no tempo que entendesse pertinente. Em outras palavras, o gestor relapso, despreocupado com o interesse público, conseguiria ampliar, facilmente e artificiosamente, o prazo de transição legislativa, empurrando o início da aplicação da nova lei o máximo que sua vontade desejasse. Com um simples ofício, em 31/03/2023, o processo seria considerado aberto e a licitação iniciada, sem qualquer planejamento e com o uso da legislação antiga.

 

Por todo o exposto, defendo que estabelecer a publicação do edital como linha de corte para o momento de escolha para a aplicação da legislação de regência é interpretação mais adequada à Lei nº 14.133/2021. Esta interpretação, de natureza sistemática, visualiza o contexto completo para estabelecer marco preciso de aplicação da nova lei a todos os órgãos e instituições, de modo a conceder segurança jurídica e fomentar o planejamento, em harmonia com os demais princípios nela estabelecidos. Além disso, propõe solução factível, sem dilatar demasiadamente a fase de transição legal, nem dá azo a abertura de processos administrativos sem lastro na realidade.